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Coluna: "Entre Aspas" com Ronaldo Castilho

Publicada em: 08/12/2025 15:18 -

Lobby no Brasil: um país presidencialista com alma parlamentarista e pulso judicialista

 

Ronaldo Castilho

 

O poder dos grupos de interesse e do lobby no Brasil tem ganhado destaque crescente em meio às profundas transformações políticas, sociais e institucionais que marcaram o país nas últimas décadas. Embora a prática de lobby seja inerente a qualquer democracia representativa, afinal, grupos organizados pleiteiam demandas específicas diante do Estado, no caso brasileiro ela ainda se desenvolve sob um véu de pouca transparência, marcada por ambiguidades normativas e distorções históricas que dificultam sua institucionalização plena. Em muitos sentidos, o lobby no Brasil continua associado a práticas informais, bastidores nebulosos e relações pouco claras entre agentes públicos e privados, o que contrasta com modelos mais maduros, como o norte-americano, onde há registros públicos, regras de compliance e limites definidos para a atuação desses grupos. A ausência de regulamentação no país cria terreno fértil tanto para a atuação legítima de grupos organizados quanto para práticas que se confundem com tráfico de influência, clientelismo e fisiologismo, problemas que atravessam a história política brasileira desde o período colonial.

Diversos pensadores, em épocas distintas, chamaram atenção para a tendência das sociedades de organizarem-se em grupos que disputam espaço e influência junto ao poder político. Alexis de Tocqueville observou, já no século XIX, que a vitalidade da democracia dependia da capacidade da sociedade civil de se organizar, mas alertava para o risco de que grupos específicos capturassem decisões que deveriam refletir o interesse público. Mais tarde, autores como Robert Dahl destacariam que o pluralismo, embora positivo para o equilíbrio democrático, tende a favorecer grupos com maior poder econômico e capacidade organizativa. No Brasil contemporâneo, essas reflexões dialogam diretamente com a realidade

de categorias profissionais, setores empresariais, corporações do funcionalismo público e organizações ideológicas que competem intensamente para moldar o processo decisório. Mesmo Maquiavel, séculos antes, reconhecia que a arena política é sempre um espaço de disputa entre forças organizadas, e que a virtù dos governantes consistia em administrar essas tensões sem perder de vista o bem comum. A questão que se impõe ao Brasil é justamente essa: como equilibrar a participação legítima dos grupos de interesse sem permitir que a máquina pública seja capturada por interesses particulares ou corporativos?

Esse desafio torna-se ainda mais complexo em um país onde a polarização política assumiu proporções inéditas. A partir de 2014, o Brasil mergulhou em um processo contínuo de divisão social, ideológica e institucional, que reorganizou até mesmo a forma como os grupos de interesse se articulam. O lobby brasileiro, que já era fragmentado, tornou-se também polarizado: entidades empresariais se alinham com determinados campos ideológicos; sindicatos e movimentos sociais se aproximam de outros; influenciadores, think tanks e organizações identitárias passam a atuar como novos players, muitas vezes com agendas radicais e estratégias digitais agressivas. Ao invés de diálogos setoriais de caráter técnico, a lógica do conflito permanente contamina a interlocução entre Estado e sociedade. A racionalidade política dá lugar a batalhas simbólicas, o que enfraquece a capacidade do país de formular políticas públicas consistentes e de longo prazo. O pensador alemão Jürgen Habermas já advertia que, quando a esfera pública é capturada por discursos polarizados e irracionais, perde-se a possibilidade de uma deliberação democrática autêntica. No Brasil, essa advertência parece particularmente atual.

Apesar de o Brasil ser uma república presidencialista, muitos analistas apontam que, na prática, seu funcionamento institucional se aproxima de um parlamentarismo disfarçado. O presidente da República, embora eleito diretamente pelo voto popular e investido de amplos poderes formais, depende profundamente de alianças com o Congresso para governar. Esse arranjo fortalece o Legislativo de modo extraordinário, dando-lhe a capacidade de controlar a agenda, negociar

cargos, distribuir emendas parlamentares e, em muitos casos, condicionar a governabilidade à cooperação de partidos e blocos específicos. É nesse contexto que o lobby legislativo se torna tão relevante. O que deveria ser um processo transparente e regulamentado opera, muitas vezes, por dentro de relações informais que conectam parlamentares, setores econômicos e grupos organizados em busca de vantagens. A expressão “presidencialismo de coalizão”, popularizada pelo cientista político Sérgio Abranches, sintetiza esse fenômeno, mas, nos últimos anos, muitos especialistas afirmam que houve uma evolução para algo ainda mais complexo: a consolidação de um “parlamentarismo às avessas”, em que o Executivo se torna dependente do Legislativo, e não o contrário.

Essa hipertrofia do Legislativo não pode ser dissociada do papel assumido pelo Judiciário brasileiro nos últimos anos. A judicialização e a politização da justiça tornaram-se fenômenos centrais no debate nacional. Como consequência tanto de omissões do Executivo quanto de paralisias do Congresso, tribunais superiores, especialmente o Supremo Tribunal Federal, passaram a arbitrar conflitos políticos, interpretar normas de forma ampliada e tomar decisões com impacto direto na vida pública. A atuação do Judiciário, frequentemente em desacordo ou tensão com outros Poderes, tornou-se objeto de debates acalorados. Há quem veja nessa postura um avanço democrático, por proteger direitos e impedir retrocessos institucionais; há também quem interprete como excesso de ativismo judicial, que desloca para juízes e ministros decisões que deveriam ser do campo político. Autores como Montesquieu, Kant e mais recentemente Ronald Dworkin destacaram o papel fundamental da justiça como guardiã dos direitos, mas também alertaram para os riscos da concentração excessiva de poder. No Brasil, onde as fronteiras entre as competências dos Poderes nem sempre são claras, o Judiciário passou a ser mais um polo de influência para grupos de interesse, que agora não atuam apenas sobre parlamentares ou ministros de Estado, mas também sobre magistrados e instituições jurídicas.

Esse entrelaçamento entre Executivo, Legislativo e Judiciário reforça a percepção de que a política brasileira funciona como um sistema altamente permeável e, ao mesmo tempo, desordenado para a influência de grupos organizados. A inexistência de uma regulamentação clara do lobby se soma a um ambiente político fragmentado, a um sistema partidário pulverizado e à cultura histórica de negociação nos bastidores. O resultado é um modelo híbrido, difícil de decifrar e pouco transparente, que enfraquece o controle social e prejudica a confiança da população nas instituições. Thomas Hobbes afirmava que a legitimidade do Estado depende da percepção de ordem e estabilidade; em sociedades onde a política é vista como um terreno de barganhas opacas, a autoridade pública tende a se fragilizar. Michel Foucault, por outro lado, lembrava que o poder circula continuamente entre instituições e grupos sociais, manifestando-se em redes complexas. O Brasil contemporâneo parece refletir justamente essa dinâmica: um emaranhado de poderes difusos, sem centro claro e com múltiplos polos de influência.

Por tudo isso, discutir o lobby no Brasil é discutir não apenas a relação entre interesses privados e Estado, mas a estrutura profunda do sistema político brasileiro. A normalização e regulamentação do lobby seriam passos importantes para tornar a democracia mais transparente e funcional. Países que adotaram modelos regulatórios mais claros, com cadastros públicos, registros de reuniões, regras rígidas de financiamento e de trânsito entre setor público e privado, conseguiram reduzir a margem para abusos e aumentar a confiança no processo decisório. No Brasil, há projetos de lei sobre o tema, mas eles avançam lentamente, em parte porque a própria falta de transparência beneficia setores que resistem a mudanças. Enquanto isso, a sociedade permanece refém de um sistema onde interesses legítimos se misturam com práticas obscuras, e onde a polarização política dificulta qualquer consenso sobre reformas estruturais.

O país enfrenta, assim, um dilema central: ou mantém o modelo atual, marcado pela informalidade, pela opacidade e pela disputa permanente entre grupos poderosos, ou caminha para um sistema mais maduro, onde a influência política seja regulada e submetida ao escrutínio público. Para avançar, será necessário recuperar a capacidade de diálogo, reduzir a dependência de acordos informais e fortalecer instituições que prezem pela transparência. Mais do que isso, será preciso que a sociedade se reconheça como protagonista da vida política, e não como mera espectadora de jogos de bastidores. Como advertia o filósofo italiano Norberto Bobbio, democracias não se medem apenas pela existência de eleições, mas pela capacidade de tornar visíveis os mecanismos do poder. O Brasil ainda tem muito a caminhar nesse sentido.

Ronaldo Castilho é Jornalista e articulista, com pós-graduação em Jornalismo Digital. É licenciado em História e Geografia, bacharel em Teologia e Ciência Política, e possui MBA em Gestão Pública com ênfase em Cidades Inteligentes.

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